top of page
capa expo_01.jpg

Neste início de 2021, ainda não sabemos bem como proceder em meio à pandemia, essa palavra que tanto tem saltado de nossas bocas. À espera de um programa de vacinação efetivo e um plano de governo social e democrático, reunimos forças para seguir criando. Esta exposição virtual é o modo que a Galeria Absurda encontrou para continuar existindo. A partir de convocatória aberta, com financiamento advindo de recursos da Lei Aldir Blanc por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza, selecionamos quatro jovens artistas da cidade cujas obras nos apresentam possibilidades vibrantes de estar no mundo, apesar de certa solidão, da insegurança e estranheza dos dias atuais.  

 

Podemos imaginar um passeio durante o qual nos deixamos guiar pelo outro.

 

Iago Barreto é quem primeiro nos toma forte pela mão e nos transporta. Além de artista, ele é educador e há anos colabora com o Museu Tremembé. Sua pesquisa em arte foi se dando no envolvimento com as culturas indígenas. Com ele, a fotografia extrapola o documento do real e parte para a alucinação, as camadas mais sutis onde não tememos o invisível. Iago intervém nas fotos que produz, alterando cores, texturas, contrastes, recortando, colando, desenhando sobre elas. Neste percurso, vamos juntos nos distanciando da zona urbana e por isso o céu se mostra tão estrelado. Olhos e ouvidos provam outra duração. A noite abre no corpo constelações, afetos, encantamentos que há muito deixamos emudecer junto à criança e ao bicho dentro de nós.

 

Pausa para a miragem no breu.

Melissa Gurgel agora nos impulsiona até a superfície. Ela nos convida a seguir viagem. Da janela do carro, as folhas de carnaúba acenam para nós, emblemáticas de uma terra que marca a transição do sertão para o mar. Mais tarde a luz do sol se derrama sobre o espelho d’água numa paisagem serrana, a sombra de um corpo feminino se projeta na cortina, caminhantes solitários atravessam uma praia, uma alameda. Melissa hoje vive entre Porto e Lisboa, e tece com Fortaleza um sentimento atlântico de saudade. Assim, doloridos de tempo e desejo, na companhia dos meninos cujas sombras se alongam na areia, vislumbramos a Ponte Metálica, cartão-postal da capital do Sol, a tremeluzir no horizonte. 

 

Mergulhamos no mar.

 

Adriel Marinho chega em silêncio e nos propõe o exercício de namorar lentamente as dunas, as sequências de ondas, o verde impreciso das águas salgadas, dos seus olhos. É bonito observá-lo pintar o litoral com a seriedade de um homem muito antigo, como se trouxesse consigo a tradição de mestres cearenses à beira-mar: Vicente Leite, Raimundo Cela. Fortaleza também é vista da varanda, apontando para o Edifício São Pedro, um amuleto em ruínas. Tal visão nos proporciona o recorte cinza mais precioso dentre suas imagens urbanas - impactante pela solidez das construções sob uma frágil lua minguante. Até o rosto é pintado por Adriel como paisagem. Há que se demorar nele, para o olho percorrer todas as planícies, os montes, os terrenos de vegetação rasteira, os solos abrasados, as areias movediças, os poços.

 

O espelho nos confunde.

Mel Andrade dá voltas ao nosso redor antes de nos conduzir. Ela traz uma série de desenhos de personagens femininas que criou quando criança e tenta dar corpo a essas mulheres, pensando em como estariam hoje, se fossem de carne e osso. Lembranças picotadas da infância: um beijo, um aniversário, um incêndio. Mais tarde, inspirada em Kafka e Marina Abramovic, ela nos leva a imaginar a exaustão e o esgotamento no espaço confinado, na espera, no jejum. Num lapso, a ação nos remete a Tehching Hsieh, que ainda espanta ao pensarmos na total entrega para a realização de suas performances. Desenhando e intervindo manualmente sobre fotografias da família, Mel toca nas memórias da casa, que se confundem com o hálito, as feridas e a vocação infantil para produção de imaginário. 

 

Estas linhas findam por aqui, mas o passeio não tem começo nem fim. Como diz Wislawa Szymborska, no poema intitulado Amor à primeira vista: “o livro dos eventos está sempre aberto no meio.” Teimamos em ligar pontos luminosos no céu. 


 

Raisa Christina

bottom of page